quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

AS FUNÇOES DO BANHEIRO

Francisco Miguel de Moura*

Escritor, membro da Academia
Piauiense de Letras


                     Há muitas funções para o banheiro. A primeira é a do banho como o nome indica, mas não a mais importante, porque há pessoas que passam dias sem fazer este acerto de conta com a limpeza do corpo.  O normal seria fazê-lo uma vez por dia. No Brasil é assim. Na Europa é apenas uma vez por semana, dizem. A segunda, que engloba também a terceira, é fazer necessidades fisiológicas – expressão muito vaga, pois nossas necessidades fisiológicas são muitas. Sem meias-palavras, essas necessidade fisiológicas se referem a mijar e fazer cocô. E são para estas que mais recorremos ao banheiro. Daí porque o leitor já deve ter ouvido, só em nossa língua, outros sinônimos mais usados para a palavra banheiro: privada, latrina, reservado, sentina, sanitário, etc. Mas há uma função mais nobre, no caso a quarta que foi comentada numa crônica do escritor Rubem Alves, do livro “Pimentas”, editora Planeta, São Paulo, 2012.  É a da leitura. O banheiro é um lugar muito próprio para leitura de vários tipos: literatura, humor, poesia, conhecimentos gerais... E até romances. Eu acabo de ler o romance "Onde vais, Isabel”, de Maria Helena Ventura, de quase 300 páginas, boa parte da sua leitura feita no banheiro - o local mais fresquinho da casa e mais silencioso. Sem mentiras. Dessa autora aprendi que o D. Dinis, o trovador, 6º rei de Portugal, casado com D. Isabel,  santificada pelo Papa da época, foi quem decretou o dialeto português oficial em Portugal, dialeto ainda ligado ao galego, ao espanhol e outros falares locais. Aprendi também que D. Isabel, quando saiu do reino de Aragão para desposar D. Dinis, levava um grande tesouro consigo - um segredo - até chegar ao seu destino e entregá-lo ao rei.
   
 E então, para que o nome “banheiro”, se às vezes nem chuveiro o tal reservado possui? Por que não o nome de privada? Mas, não há meio, a gente está apertado na rua, entra numa loja ou repartição, e pergunta: - Aí tem um banheiro? Ou onde fica o banheiro?  Dá licença? E vai lá, na privada. Mesmo porque não há privadas públicas e quando as há são insuportáveis, não têm a menor conservação, a gente pode até adoecer servindo-se delas. Aliás, um dia desses fui postar umas cartas na agência central dos Correios e tive necessidade de urinar – essa é uma necessidade que ocorre sempre, visto que o calor tropical exige que se beba muita água. A funcionária me disse que não havia privada para os clientes, somente um banheiro reservado aos funcionários. Depois que reclamei que era de lei toda repartição que atende ao público ter um banheiro para quando alguém precisasse, ela disse que me levaria (e levou) ao dos funcionários, como se fosse um favor e não uma obrigação legal.
  
  Há uns dois anos, eu vivia numa casa grande, mas troquei por um apartamento, condizente com a vida moderna, quando não se pode pagar mais do que um empregado doméstico, quase sempre uma cozinheira que também lave a roupa.  Mas, na casa, mesmo mais ou menos ampla, sempre achei interessante ler no banheiro. Ali, ninguém era perturbado, o que não me surgiu foi a idéia de fazer uma bibliotequinha dentro. E aqui, no apartamento, propus seriamente a biblioteca. Depois da instalação de um ventilador, iniciativa da mulher, em cada banheiro, minha proposta tinha muito a ver. Ela riu como que aprovando. Não sei se minha proposta vai ser executada. No banheiro, eu posso ler meus poetas Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Castro Alves e até Camões, quem sabe, “Os Lusíadas”. Por falar nesse imenso poema que fez a nossa língua firmar-se verdadeiramente como língua de civilização, podemos dizer que ele traz uma sabedoria imensa em suas páginas, e só no silêncio do banheiro é que poderíamos interpretá-lo em profundidade. No banheiro, nada deve ter a nos atormentar: rádio, celular e de outras maquininhas de mão cujos nomes não sei. Vou dizer apenas uma, como já ouvi: “ipade”. Mas é escrito “ipode”. E pode? No banheiro, não. Contracultura. Descartável. O que é salvo num segundo, no seguinte já é deletado... Cultura não se descarta: conserva, cultua. E a gente pode ficar tranqüilo que guardará por muito tempo, incorporado, o que leu, sentiu e sonhou para própria vida. Sim, porque no banheiro se pode até sonhar com emprego, namorada, divulgação de algo interessante e de interesse para a riqueza cultural da pátria.  Há melhor sabedoria do que ter aprendido a viver bem? Pela cultura se aprende a viver bem. Não pelos livros de auto-ajuda, mas se possível por todos os livros de alta ajuda: romances, contos, novelas, história do país e do mundo, etc. O exemplo da leitura, no banheiro, deve ser repassado às crianças, lugar principal para começar a educação delas: Não jogar papel servido no chão (pra isto, lá deve ter um cesto), dar descarga depois de servir-se, e, enquanto se serve, ler toda a boa literatura infantil, de Monteiro Lobato a Cecília Meireles, chegando, certamente, até os mais novos escritores – que são muitos.
   
 Daqui a pouco, como sugeriu humoristicamente Rubem Alves, o papel higiênico deve ser todo ele impresso com pensamentos dos melhores pensadores e poetas, de Sócrates a Jesus Cristo, de Neruda a Hermann Hesse, de Adélia Prado a Mário Quintana e Manoel de Barros. Do último, ele citou um verso bem a propósito deste tema e crônica, com o qual quero terminar: “Também as latrinas desprezadas que só servem para ter grilos dentro – elas podem um dia milagrar violetas”.
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(Publicado no jornal O Dia, Teresina, 03.11.2012)

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